terça-feira, 7 de agosto de 2012

De Gatos e Ratos - Ruth Fleury

Publico hoje uma grata surpresa que recebi. Ruth Fleury é trineta de Carlos von Koseritz e também escritora. Leia abaixo a divertida crônica que escreveu sobre seus gatos.


DE GATOS E RATOS        


Cheguei à conclusão de que os gatos são animais consoladores, isto é, os pretos e brancos, outros devem ter uma missão, que não conheço. Mas todos têm seus defeitos, entre eles uma urina malcheirosa que tresanda até longe e avisa: “Aqui é uma casa que tem gatos,” e fezes não muito melhores. Criadores de gatos não devem ter mais nariz ou olfato. Contudo os gatos são do bem, enviados não sei por quem, quando a gente mais precisa. Não os meus gatos, que eram bestinhas, um amarelo de nome Bartolomiau e o outro tigrado, e tantos nomes lhe demos que nenhum pegou, e foi só gato mesmo.
Quando minha mãe morreu, os gatos sumiram por uns dias, voltaram depois, mas com imensa cautela, e, inexplicavelmente, resolveram daí em diante fugir de mim, com medo de meus sapatos, de meu andar que ressoava fortemente na casa quase vazia. Não sentavam mais em meu colo, contentando-se em ficar no chão perto do sofá, mas vigilantes. Se eu levantava, disparavam os dois apavorados, e ainda tinham a cara de pau de estar sempre miando por comida. Na visão deles, eu só tinha uma função: alimenta-los toda hora. Não só eu sentia desesperadamente a falta de minha mãe. Os gatos também sentiam sua falta. Apreciavam seu andar vagaroso, com chinelinhos de feltro, seu colo magro, mas acolhedor, sempre fofo e quente pelas mantas e cobertores que usava nas pernas. Mas esses gatos não consolavam de nada, só urinavam sempre e inapelavelmente em qualquer lugar que estivesse limpo. Contudo...
Uma semana após a missa de sétimo dia de minha mãe, eu não tive coragem de ir para o sítio, lugar que minha mãe gostava muito, mas todos os meus filhos foram com esposas, crianças, cachorros e tudo o mais. Foram à noite, tudo normal, ficaram conversando até tarde, e na manhã de sábado, quando sentaram na imensa e acolhedora mesa do terraço para tomar café, estando todos já sentados, uma gata branca e preta saiu da sala para o terraço, pulou num dos bancos e ficou ali graciosamente esperando que lhe servissem alguma coisa. Ninguém a conhecia, ninguém soube de onde ela veio, meus caseiros nunca a tinham visto no sítio, e essa impressão de que alguém a mandara para consola-los, foi tão grande que a batizaram imediatamente de Estrela. A minha mãe chamava-se Stella. A gata continua no sítio. Quase um ano se passou, muito poucas vezes vamos até lá, mas ela continua instalada no terraço numa das cadeiras almofadadas, olhando a paisagem. Só sai de lá para comer a ração de outros gatos que aparecem e ficam por lá para caçar ratos. Comida a ração a Estrela volta digna para seu terraço, sem misturar-se àquela escumalha felina.
Minha irmã, que hoje mora nos Estados Unidos, teve uma gata desse tipo, preta e branca que só faltava falar, como dizem, vivia dando “beijinhos” pequeninas mordidinhas de leve, no rosto da minha irmã. Essa gata viveu uns doze anos e como estivesse doente minha irmã a carregou para sua casa no exterior, onde ela viveu por mais um tempo. Quando morreu minha irmã mandou cremar, arrumou uma urnazinha para as cinzas que estão hoje em cima da lareira. Conta minha irmã que uma semana após a morte da Kika, ouviu uns miados na porta principal da casa, e ali bem em cima do capacho “Wellcome” estava uma consoladora, gata branca e preta também. Essas coisas chegam a dar gastura no estômago da gente.
Tive também um gato preto e branco chamado Don Ramon que criei com mamadeira e viveu, uns oito anos, e acho que foi o mais digno representante da raça felina que jamais apareceu neste mundo . Nunca deu qualquer atenção a cães, era o bicho aparecer farejando e Don Ramon, numa faísca, dava-lhe só uma patada no focinho e o cachorro se afastava  ganindo e lambendo a ferida. Esse gato passeava comigo, ao meu lado por qualquer rua que eu andasse e quando eu falava “vamos para casa”, ele virava e voltava naquele passo sossegado e almofadado dos gatos, sem se distrair com nada, até talvez para me proteger e levar em casa. Morreu logo depois que me casei. Acho que foi desgosto de não ter mais a quem acompanhar. E´ engraçado, só pensei nisso agora, na época não me dei conta.  A gente não vê mais nada alem de si própria quando é jovem...
Enfim fiquei só com dois gatos que não me consolavam e pareciam me detestar. Por que não me desfiz deles? Ótima pergunta, mas eles também cumpriam suas obrigações, por exemplo, não entrava em casa nenhum inseto, principalmente baratas que eles matavam na hora. Às vezes matavam alguns passarinhos e eu ficava danada, mas entendendo. as razões deles.
Quando no mês de março vieram para São Paulo aquelas chuvas só admissíveis nas monções da Índia, todos os bueiros encheram-se de água, e os ratos desesperadamente tentavam sair daquela aguaceira e entravam pelos portões das casas. Eu morava nos Jardins, onde não é muito comum achar ratos nas salas. Pois bem, não havia manhã que eu descesse para o café da manhã sem topar com dois ou três camundongos mortos bem no meu tapete, embaixo da mesa da sala de almoço. Era um desespero ter de embrulhar os ratos no jornal, coloca-los num saco plástico bem fechado, vai que algum não estivesse bem morto e roesse o saco, e leva-los para a rua para o lixeiro pegar à noitinha. Acho que os gatos matavam os ratos assim que eles entravam no jardim, e depois os traziam pela portinha de gatos colocavam embaixo da mesa para mostrar que cumpriam suas obrigações.
Quando eu estava de mudança da casa, os gatos sumiram um atrás do outro, e não mais voltaram. Fiquei sentida, ainda mais que os ratos estavam abusando, carregavam tudo que não estivesse na geladeira. Tranquei todos os armários, mas esqueci dos livros. A casa tinha um jardim de inverno, onde fui colocando pilhas dos livros que iria levar. Uma noite ouvi um barulho de livros caindo e topei com três pares de olhos brilhantes pelos cantos, tentando ficar invisíveis. Não podia fazer nada e nem tinha mais gatos para chamar. Fiquei imóvel, meio escondida, atrás de uma cortina, um bocado de tempo e os ratos foram saindo do esconderijo, para roer as capas dos livros. Não sei que gosto encontravam nelas, claramente pouco alimentícias, ainda mais que estavam roendo “Vidas Secas” e” Seara Vermelha” Fiquei impressionada com a escolha dos livros, eram ratos socialistas aqueles, e percebi que não poderia lutar contra os “companheiros”. Política é coisa séria, não alimenta mas vicia. Conformei-me em perder uma parte das capas dos livros e uma semana depois mudava-me, deixando a casa, e os ratos pessimistas em relação`aquele local. O que eles fizeram depois não sei, devem ter ido para a casa do vizinho que tinha uma boa biblioteca. Nessa ocasião sofrida da mudança, enquanto me acostumava a nova moradia, não me apareceu na porta nenhum gato consolador, mesmo porque moro no nono andar.

                                                                                                                               Ruth Fleury.

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